Slow medicine: a medicina sem pressa

Dr. Angelo Bannack

Atualizado há 7 meses

Você já ouviu falar em Medicina Sem Pressa ou Slow Medicine? É um termo cunhado pelo médico cardiologista italiano Alberto Dolara para tentar fazer um contraponto com a medicina atual, que é agitada e com consultas cada vez mais rápidas e com muita solicitação de exames.

Neste artigo eu apresento a Medicina Sem Pressa e suas premissas. Também explico os motivos que me fizeram escolher a Medicina de Família e Comunidade como minha especialidade e em que momento a especialidade vai de encontro à Medicina Sem Pressa. 

Boa leitura.

*Prefere assistir? O conteúdo deste artigo também está disponível no vídeo abaixo. 

Vídeo: Slow medicine: a MEDICINA SEM PRESSA

Slow medicine: a MEDICINA SEM PRESSA

O problema da medicina atual

É comum nas conversas com amigos e pacientes perguntas como: “Você tem indicação de um gastrologista? Estou com sensação de peso no estomago depois de comer e acho que é gastrite. Preciso fazer uma endoscopia.”. “Tem indicação de um neurologista? Estou com uma tontura e dor de cabeça e acho que preciso de uma tomografia.”. Talvez você que esteja lendo isso já fez essas perguntas a alguém.

De posse da indicação, você vai no especialista, numa agenda que levou semanas ou meses para conseguir a consulta, agendada para um horário, porém, é atendido com atraso e muitas vezes numa consulta que dura poucos minutos. Você mal tem tempo para explicar seu problema ou tirar suas dúvidas, sai do consultório com a solicitação de vários exames, além de várias medicações que muitas vezes se somam aos já vários remédios em uso.

Depois de mais algumas semanas (às vezes meses), consegue fazer os exames e retorna ao médico para mostrar os resultados. O médico limita-se a informar que está tudo bem ou então que precisa pedir mais alguns exames ou encaminhar para outro colega, especializado no possível problema.

Parece ficção, mas é a forma mais comum de funcionamento da medicina atual e posso afirmar com certa confiança de que você já passou por essa situação, acompanhou ou conhece alguém que passou por uma consulta assim.

Como é a consulta que o médico aprende na faculdade

Na faculdade de medicina, nós médicos somos treinados a escutar todas as queixas do paciente. Há uma orientação de deixar o paciente falar todos os seus problemas sem ser interrompido. Em seguida deve-se orientar a conversa com o paciente, numa entrevista com um roteiro pré-estabelecido chamado de anamnese.

Além da queixa atual, com perguntas sobre quando começou o sintoma, o que piora ou melhora, a localização, medicações que tomou para tentar ajudar, questiona-se sobre o histórico das condições médicas já tratadas ou em tratamento, cirurgias realizadas, doenças na família, com quem vive, o que faz, atividade física e medicações de uso diário.

O médico então levanta algumas hipóteses para justificar os sintomas e muitas vezes, para testá-las, faz um exame físico do paciente, afere a pressão, a temperatura, ausculta o coração, os pulmões, apalpa o abdome, faz movimentos para testar os locais de possíveis dores reclamadas, examina a garganta, os ouvidos, enfim, o que for preciso para confirmar ou afastar as hipóteses iniciais.

Na maioria das vezes só a história inicial coletada já é suficiente para determinar a doença e afastar causas graves. Em algumas, o exame físico do paciente não é suficiente e precisa-se fazer uso de exames complementares para confirmar ou afastar alguma suspeita. Como o nome sugere os exames são apenas um complemento de uma escuta bem-feita e um exame físico minucioso. Isto tudo é o que se aprende na faculdade de medicina.

Como é a consulta na realidade

Quando iniciam sua atividade profissional os médicos são então lançados para um sistema que os obriga a fazer consultas de 15 ou 20 minutos, em que têm que explorar todo o roteiro da anamnese, fazer o exame físico completo, pedir exames complementares se necessário e ainda fornecer receitas e atestados. Algo humanamente impossível em tão curto espaço de tempo.

Os médicos se veem obrigados então a se especializarem ao máximo a ponto de se dedicarem a uma única doença ou parte do corpo. A anamnese fica reduzida a explorar determinado órgão, e o médico acaba pedindo aqueles inúmeros exames que aprendeu na especialização de forma a tentar trocar seu tempo de escuta e exame físico criterioso por laudos sofisticados.

Surgimento do movimento Slow Medicine: A Medicina Sem Pressa

Numa tentativa de mudar esse processo surgiu o movimento Slow Medicine, a medicina sem pressa. O termo foi cunhado inicialmente pelo médico italiano Alberto Dolara em 2002 em um artigo científico publicado numa revista de cardiologia. O movimento se fortaleceu na Itália durante o início do século XXI e se adentrou principalmente nas áreas de geriatria, chegando ao Brasil logo em seguida, com a criação de um site em 2016.

Princípios da Medicina Sem Pressa

A medicina sem pressa é uma tentativa de resgate da medicina tal qual é aprendida na faculdade, com uma escuta ativa e respeitosa, permitindo tempo para ouvir e entender as queixas, tempo para avaliar e tomar as decisões.

Entre seus princípios, rege que nem sempre o que é melhor para um paciente é o melhor para outro, por isso o cuidado precisa ser individualizado e a perspectiva e os valores do paciente devem ser sempre respeitados.

Na Slow Medicine procura-se valorizar a autonomia do indivíduo, com expectativas e preferências levadas em consideração numa decisão compartilhada com o médico. A filosofia propõe ainda o foco na prevenção de doenças, com o incentivo de alimentação saudável e exercícios físicos regulares como parte essencial do cuidado aliados à priorização da qualidade de vida.

Outro princípio considera que a medicina tradicional, baseada em evidências, deve sempre ser utilizada, com o uso de medicina complementar sempre que possível, com ênfase nas evidências, eficácia e segurança do paciente.

Em alguns casos o melhor a fazer é esperar. Já dizia Hipócrates, o pai da medicina: “Em primeiro lugar não causar o mal. Na dúvida, não intervenha”. O resgate à paixão pelo cuidar e o sentimento da compaixão são valorizados pela medicina sem pressa e o uso da tecnologia, por mais empolgante que seja, deve cumprir seu objetivo de auxiliar, mas garantindo a qualidade de vida e respeitando o ambiente.

Na medicina sem pressa pode-se algumas vezes permitir a evolução natural da doença, que cura ou avança sem deixar sequelas, ou pelo menos evita-se causar danos maiores, não sugerindo tratamentos abusivos, caros e muitas vezes inúteis e desnecessários. A demora permitida é uma forma de diagnóstico, onde aguarda-se um tempo para ver a evolução da doença, em que o simples fato de a doença melhorar comprova uma hipótese diagnóstica.

Isso não quer dizer que exames médicos não sejam pedidos. Sim, eles precisam ser pedidos em muitas vezes. Não tem como adivinhar seu colesterol, se seu rim está funcionando bem ou se você tem diabetes sem um exame de sangue, porém pode-se suspeitar da doença apenas pelos sintomas ou sinais dados pelo corpo, o que justifica a solicitação do exame. Os valores de referência dos exames são estimados em análises probabilísticas e devem ser solicitados e interpretados de acordo com a história e as queixas do paciente. 

Medicina de Família e Comunidade e a Medicina Sem Pressa

Talvez a Medicina de Família e Comunidade seja a especialidade que tenha sua base mais próxima da medicina sem pressa. Na verdade, é até possível que a Slow Medicine tenha se espelhado nessa especialidade médica, pois a Medicina de Família é muito mais antiga. No Brasil existe desde 1976 pelo menos. Apesar de não haver uma defesa ou encontro direto com os princípios da Slow Medicine, ela tem sua raiz no chamado método clínico centrado na pessoa, com o foco em entender o paciente, sua família e a comunidade na qual está inserido.

É uma especialidade que por vocação evita pedir exames desnecessários e se vale da medicina baseada em evidências para a tomada de decisão, fazendo eventual uso de terapias complementares sempre que possível e necessário.

Conheci a Slow Medicine durante a faculdade de medicina e foi amor à primeira vista. E quando percebi que a Medicina de Família era a especialidade que melhor me permitia a prática de um cuidado integral ao paciente e a sua família, aliado a uma escuta ativa, e que os princípios da medicina sem pressa se encaixavam perfeitamente nesse modelo, não tive dúvidas sobre qual especialidade seguir.

O médico de família é especializado em pessoas. Ele é preparado para atender gestantes, bebês, crianças, adolescentes, homens, mulheres, adultos e idosos. Em muitos países, como no Canadá, os sistemas de saúde são centrados neste especialista, onde as pessoas têm o seu médico de família de referência, que o conhecem desde que nasceram, atende todos os integrantes de sua família, sabe onde trabalham, quais são seus anseios e necessidades. É ele quem encaminha os pacientes para outros médicos especialistas quando necessário uma investigação ou tratamento de condições ou doenças específicas.

No Brasil, em alguns estados, o SUS investe no médico de família e alguns planos de saúde estão focando seus atendimentos em modelos parecidos com o canadense. É uma área em franca expansão e a medicina sem pressa é uma aliada de suma importância. 

Sem pressa não quer dizer que a consulta precise demorar horas. O conhecimento e entendimento do paciente e seus problemas se distribui ao longo de diversas consultas ao longo dos meses e anos. Você não conhece bem seu colega de trabalho no primero dia. Especialistas que atuam com foco em uma doença ou órgão também podem e devem praticar a Slow Medicine. O diagnóstico e acompanhamento de inúmeras doenças depende de médicos especializados, mas o atendimento humano, integral, centrado nas expectativas e realidades do paciente deve ser realizado por todos.

Conclusão

Continuo recebendo indagações sobre a indicação de especialistas para queixas usuais. Indico sempre que antes de um especialista, que o paciente procure ter um médico que o ouça, o respeite, entenda suas crenças e necessidades. E que sempre que possível tenha um médico que faça a gestão do seu cuidado e avalie com esse a real necessidade de encaminhamentos, pois como dizia um experiente professor de propedêutica: “Quem tem vários médicos na verdade não tem nenhum”.

*Este é um texto de opinião. Se você gostou ou tem dúvidas ou considerações: pergunte, curta e compartilhe.

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Um forte e caloroso abraço.

Dr. Angelo Bannack - Médico de Família

Dr. Angelo Bannack

Sou um médico que gosta de escrever, curte tecnologia e que valoriza a ciência como o caminho para a nossa evolução. Como médico de família, atendo em meu consultório particular em Curitiba e em consultas domiciliares, ajudando as pessoas a manterem-se saudáveis, com check-ups regulares, orientações e contribuindo no processo de diagnóstico e tratamento da grande maioria dos problemas de saúde.

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