Gota: a doença do ácido úrico (e dos reis)

Dr. Angelo Bannack

Atualizado há 2 meses

A gota é uma doença que ocorre devido ao acúmulo de cristais de ácido úrico nas articulações, afetando principalmente a do dedão do pé. Quem já teve crise de gota sabe que ela muitas vezes é incapacitante, impedindo a pessoa de colocar o pé no chão e de caminhar.

No passado ela já foi descrita como uma doença de reis e de pessoas ricas. Isso porque o consumo de carne e de bebidas alcóolicas são os seus principais desencadeadores e, em tempos de vacas magras, somente os reis e afortunados comiam e bebiam com fartura.

Neste artigo eu vou te explicar por que a doença gota acontece, como é feito o diagnóstico e o tratamento. Também vou te dar dicas de como se ver livre das crises. Boa leitura.

O que é a gota?

A gota é uma doença causada pelo acúmulo de cristais de urato monossódico nas articulações, nos ossos e nos tecidos moles (gordura e músculos). Ela costuma afetar as articulações dos dedos dos pés, principalmente a do dedão, e normalmente afeta apenas um pé. Porém, pode afetar qualquer articulação e inclusive nos dois pés ao mesmo tempo.

Quem tem crise de gota tem muita, mas muita dor no local afetado, normalmente impedindo a pessoa de colocar o pé no chão e de caminhar. A região pode ficar vermelha e inchada. A dor costuma atingir seu pico em 12 a 24 horas e costuma melhorar em alguns dias mesmo sem tratamento, porém pode durar semanas. E é comum a descamação da pele durante esse processo de melhora.

Para se ter gota é necessário ter excesso de ácido úrico (ou urato) no sangue, o que também é chamado de hiperuricemia. Mas apesar disso, nem toda pessoa com hiperuricemia terá gota. São necessários muitos anos de elevação do urato, bem como predisposição genética para tal.

O ácido úrico também pode se acumular nos rins, favorecendo o aparecimento de cálculos renais.

As crises de gota costumam ser desencadeadas por bebida alcoólica e alimentos ricos em purinas, principalmente carnes (frango, boi, carneiro, porco), miúdos (coração, fígado, rins), pele de frango e frutos do mar (peixe, camarão, ostras, caranguejo). As purinas são convertidas em ácido úrico quando metabolizadas pelo corpo.

Apesar de mulheres também serem afetadas, a gota é uma doença mais comum em homens, com pico de aparecimento entre 40 e 60 anos de idade. Outros fatores de risco incluem:

História

Ao que tudo indica, o termo gota foi cunhado pela primeira vez pelo monge dominicano Randolphus of Bocking no início do século XIII. Ele é derivado da palavra em latin “gutta” que significa “uma gota” de líquido. O dicionário Oxford destaca que o termo é derivado da ideia de que a doença seria causada pelo gotejamento de um líquido ruim – um veneno – do sangue para as juntas (articulações).

Historicamente a doença era considerada como uma doença de reis ou de homens ricos. Isto muito antes de ganhar o seu nome atual. E provavelmente isso se deve ao fato de a doença atacar principalmente homens e que consumiam muita carne e bebida alcóolica. Algo somente possível para alguns afortunados.

Em 1683 o médico inglês Thomas Shydenham descreveu sua ocorrência nas primeiras horas da manhã, numa descrição quase poética:

“Os pacientes gotosos são, geralmente, homens velhos ou homens que se desgastaram tanto na juventude que causaram uma velhice prematura – desses hábitos dissolutos, nenhum deles é mais comum do que a indulgência prematura e excessiva em venerâncias e paixões exaustivas semelhantes. A vítima vai para a cama e dorme com boa saúde. Por volta das duas horas da manhã, ele é acordado por uma forte dor no dedão do pé; mais raramente no calcanhar, tornozelo ou peito do pé. A dor é como a de uma luxação, mas as partes parecem como se água fria tivesse sido derramada sobre elas. Seguem-se então calafrios e calafrios e um pouco de febre… A noite é passada em tortura, insônia, reviravolta da parte afetada e mudança perpétua de postura; a agitação do corpo é tão incessante quanto a dor da articulação torturada e piora à medida que o ataque surge.”

E foi somente em 1848 que o médico, também inglês, Alfred Baring Garrod descobriu que a causa da doença era o excesso de ácido úrico no sangue.

Como o médico sabe que eu tenho gota?

O médico vai fazer o diagnóstico basicamente pela história de acúmulo de ácido úrico no sangue, bem como dos sintomas típicos de dor de aparecimento súbito em uma articulação do pé.

Na dúvida, o diagnóstico pode ser confirmado com a aspiração do líquido intraarticular com a ajuda de uma agulha, um procedimento chamado de artrocentese. O líquido é aspirado e enviado para um laboratório para ser avaliado no microscópio. A verificação da presença de cristais refringentes à luz confirma o diagnóstico de gota.

O conteúdo do líquido também pode ser enviado para um laboratório para procurar sinais de inflamação que possam eventualmente indicar outra doença.

Apesar de ser reservada para casos duvidosos, também é possível usar radiografia, tomografia, ressonância magnética e exames de ultrassom para avaliar a articulação envolvida.

Se não for gota o que pode ser?

Na falha do tratamento, ou na dúvida quanto ao diagnóstico, o médico pode querer investigar outras condições que podem ser eventualmente confundidas com uma crise de gota, entre elas a artrite séptica. Nesse tipo de artrite é comum o aparecimento de febre, além de aumento no sangue de marcadores de infecção, entre eles o VHS e o PCR.

Uma fratura óssea na articulação pode mimetizar uma crise de gota. Nesse caso existe a história de trauma antes da crise. Além disso, outras condições também pode parecer com a gota, como por exemplo a artrite reumatoide (que tem diversas particularidades), a osteomielite (um tipo de infecção do osso) e outras doenças de depósito de cálcio (pseudogota).

Como é feito o tratamento da crise?

O tratamento é feito com o uso de antiinflamatórios, corticoides ou uma medicação chamada de colchicina.

Estas medicações são tomadas via oral por alguns dias. É possível ainda o tratamento com a aplicação de uma injeção de corticoide diretamente na articulação afetada.

O ideal é que a medicação seja iniciada o quanto antes, de forma a reduzir a gravidade dos sintomas. O tratamento costuma durar de 7 a 10 dias, mas deve-se seguir o prescrito por seu médico.

Em casos de crises recorrentes, o médico pode iniciar um medicamento para reduzir os níveis de ácido úrico no sangue. O mais conhecido deles é o alopurinol. E uma vez iniciado seu uso, é comum que ele seja tomado por tempo indeterminado.

Em hipótese alguma se automedique. Pode ser que não seja uma crise de gota e além disso toda medicação tem seus riscos e suas contraindicações. E a maioria das medicações para o tratamento de crise de gota não devem ser tomadas por muito tempo e todas só devem ser usados sob orientação e acompanhamento médico.

Tem como evitar uma nova crise de gota?

A principal forma de evitar uma nova crise de gota é mudando o estilo de vida. É de extrema importância ter uma alimentação saudável, realizar atividade física regularmente e controlar os fatores de risco (obesidade, hipertensão arterial, colesterol alto, diabetes).

Evitar bebidas alcoólicas é mandatório. Isso devido ao excesso de purinas. Bebidas fermentadas têm maior quantidade de purinas, porém as destiladas também têm níveis que podem desencadear as crises. Nenhuma quantidade é segura para quem tem predisposição a ter gota.

Dietas com restrição de proteínas (que são altas em purinas e que desencadeiam as crises) podem ser tentadas, principalmente durante as crises. Porém, é difícil manter uma dieta baixa em proteína por muito tempo e o uso de medicações que reduzem os níveis de ácido úrico tendem a ser mais benéficas do que a dieta restritiva.

E abandonar as bebidas açucaradas e limitar os alimentos ricos em frutose pode ajudar a evitar as crises. Manga, uva, maçã e caqui são as frutas mais ricas em frutose.

Algumas evidências mostram que a dieta DASH tem o maior potencial para reduzir os níveis de ácido úrico. O apoio de uma nutricionista pode ser importante para se conseguir uma dieta apropriada.

Conclusão

A gota é uma doença causada pelo acúmulo de ácido úrico nas articulações. A articulação do dedão do pé é a mais afetada e a doença pode ser incapacitante, com dor forte que impede a pessoa de colocar o pé no chão. As crises costumam ser desencadeadas pelo consumo de bebidas alcoólicas e carnes, que são ricas em purinas e que se convertem em ácido úrico no corpo. O tratamento é feito com medicamentos anti-inflamatórios, corticoides, entre outros. Emagrecer, evitar bebidas alcoólicas e cuidar dos fatores de risco podem ajudar a evitar as crises.

Espero que o artigo tenha sido útil. Se ficou com dúvidas comente aqui ou nas redes sociais.


*Imagem que ilustra este artigo: © Jittawit.21 via canva.com.

Dr. Angelo Bannack - Médico de Família

Dr. Angelo Bannack

Sou um médico que gosta de escrever, curte tecnologia e que valoriza a ciência como o caminho para a nossa evolução. Como médico de família, atendo em meu consultório particular em Curitiba e em consultas domiciliares, ajudando as pessoas a manterem-se saudáveis, com check-ups regulares, orientações e contribuindo no processo de diagnóstico e tratamento da grande maioria dos problemas de saúde.

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