Tarde de 23 de dezembro. Era para ser mais um daqueles plantões tranquilos, com todo mundo nos preparativos para celebrar um Natal em família. Eis que entra na porta da unidade uma mulher aos gritos: “Socorro, socorro! Ele tá passando mal!”. Fui até o saguão e encontrei a equipe de enfermagem ajudando a deitar numa das macas de metal descascado e enferrujado disponíveis no posto, um homem idoso de cabelos e barbas brancas, com uma barriga enorme, vestindo uma roupa vermelha, com as duas mãos pressionando fortemente o peito – uma em cima da outra – em sinal de muita dor e reclamando de falta de ar. Disse que a dor começara minutos antes ao carregar um dos trenos com os presentes de Natal. Pois é, fiquei confuso e no início não acreditei. Mas era sim o Papai Noel! E estava com dor torácica! Que iniciou após esforço físico! Clássicos sinais de um possível infarto agudo do miocárdio, ou apenas infarto para os íntimos.
Levamos Papai Noel para a sala de procedimentos e rodamos um eletrocardiograma (ECG) enquanto a habilidosa equipe de enfermagem já providenciava um acesso venoso (uma agulha no braço do Papai Noel para podermos instilar medicamentos), verificava a pressão, os batimentos cardíacos e a saturação de oxigênio. O eletro não dos deixou dúvidas: Papai Noel infartou! Sua pressão arterial era de 170×100 mmHg, sua saturação de oxigênio de 92%, a frequência cardíaca de 120 batimentos por minuto. Seu coração não apresentava nenhum sinal de arritmia nem sopros. Os pulmões estavam limpos na ausculta.
Coloquei no Papail Noel um cateter nasal com oxigênio à 100% – devido a queixa de falta de ar – e iniciei medicações para dor (morfina) e outras para tentar reduzir os possíveis estragos do infarto (AAS e clopidogrel). Queria usar nitrato, mas a acompanhante informou que Papai Noel havia usado um medicamento na noite anterior (sildenafila – sim, Papail Noel usa viagra!) que contraindicava esse remédio.
Enquanto mantínhamos os cuidados e o monitoramento dos sinais vitais, liguei para o SAMU (192), solicitando o transporte do paciente para um hospital onde pudesse fazer um procedimento chamado cateterismo, visando descobrir qual ou quais artérias do coração estavam entupidas e avaliar a possibilidade de desobstrução com a colocação de stents (as famosas “molinhas” no coração).
Enquanto esperávamos pela ambulância do SAMU, Papai Noel me disse que era fumante desde os 16 anos de idade, tendo sido diagnosticado com DPOC há mais de 10 anos, com necessidade de uso de bombinhas para amenizar a falta de ar constante. Disse ainda que tinha pressão alta e diabetes e que inclusive precisava usar insulina diariamente. Fazia uso de remédio para tratar o hipotireoidismo e anti-inflamatórios para suas dores de cabeça, que o acompanhavam há mais de 2 décadas. Disse que desde que descobriu o DPOC nunca mais havia ido ao médico e não estava mais fazendo seus checkups anuais. Tinha medo de que seu médico, que estava pedindo muitos exames ultimamente, pudesse lhe causar alguma iatrogenia. Era sedentário, não fazia exercícios físicos, nem controlava sua alimentação. Não estava dormindo bem e fazia uso irregular dos seus medicamentos pois não sabia que podia pegar de graça seus remédios pelo SUS.
É claro que essa história é fictícia, mas poderia não ser. Os principais fatores de risco para o infarto cabem bem no estereótipo do Papai Noel (pelo menos no que pintei aqui): homem, idoso, sedentário, obeso, fumante, diabético, hipertenso e com colesterol elevado. E é óbvio que mulheres e pessoas que não tenham nenhum destes fatores podem também ter infarto, porém sua prevalência é muito menor nestes casos.
Infarto Agudo do Miocárdio
O infarto agudo do miocárdio é definido como o aparecimento de sinais e sintomas (dor no peito, falta de ar, palpitação) devido ao sofrimento dos músculos do coração ocasionado pelo entupimento de uma de suas artérias. O conjunto de músculos de que o coração é feito é chamado de miocárdio. Assim como todos os outros músculos e tecidos do corpo, o miocárdio precisa de sangue para receber os nutrientes, oxigênio e energia de que necessita para fazer sua função de se contrair pelo menos 60 vezes por minuto durante muitas décadas. O miocárdio não consegue se nutrir com o sangue que passa por dentro do coração e que é bombeado para todo o corpo. Ele precisa do sangue que entra nos músculos a partir das artérias. As artérias do coração recebem o nome de coronárias. São duas coronárias principais (direita e esquerda) e diversas outras derivadas dessas.
As artérias vão entupindo com o passar dos anos devido à predisposição genética e aos maus hábitos de vida, principalmente por alimentação com excesso de gordura saturada, falta de atividade física, pressão alta não tratada, diabetes descontrolada e tabagismo. O excesso de gordura (colesterol) circulando no corpo, associado à pressão elevada, diabetes e ao cigarro, vai se prendendo nas paredes das artérias, reduzindo o espaço para a passagem do sangue. Artérias do corpo inteiro podem ser afetadas, mas são as do coração (as coronárias) que – quando entupidas – causam o infarto. Levam décadas para esse estreitamento ocorrer, por isso o infarto é muito mais comum em idosos.
O entupimento completo pode ocorrer por um desprendimento de uma placa de gordura presente em uma coronária ou uma de suas derivações. Em situações de estresse físico ou emocional (atividade física, emoções, brigas), o coração acaba se acelerando, contraindo mais vezes por minuto. Essa contração adicional faz com que o miocárdio necessite de mais sangue para obter sua energia. Se as coronárias estão muito estreitas pelo acúmulo de gordura, pode ocorrer a falta de nutrientes, oxigênio e energia para uma parte do miocárdio, o que ocasiona uma falha no coração e pode desencadear dor no peito, aumento da velocidade do coração (um mecanismo para tentar compensar o mal funcionamento do órgão) além de aumento da pressão arterial (para tentar compensar o bloqueio da artéria).
Angina
A Angina pectoris ou simplesmente angina é o termo usado quando se pensa que um desconforto ou dor no peito é atribuível ao infarto agudo do miocárdio.
Quem tem angina geralmente tem uma história bastante típica:
- A angina é geralmente caracterizada mais como um desconforto (pressão, aperto, constrição, asfixia, queimação, nó na garganta ou no peito) do que como dor.
- Não é incomum o paciente descrever que está sentindo um aperto como se tivesse um elefante pisando em seu peito.
- Desconforto no peito descrito como dor (pontiaguda, esfaqueada, alfinetadas e agulhadas) normalmente não são características de infarto.
- O desconforto pode começar leve e ir aumentando de intensidade gradualmente. Uma vez presente é constante e não se altera com a mudança de posição ou com a respiração.
- Não é sentida em um local específico, mas geralmente é um desconforto difuso, espalhado, que pode ser difícil de localizar.
- Geralmente é provocada por atividades e situações que aumentam a necessidade de oxigênio e energia pelo miocárdio, tais como atividade física (caminhadas, corridas, as vezes até tomar banho ou trocar de roupa) ou situações de estresse (brigas, ansiedade, angústia pela espera de um gol que não vem numa partida de futebol, por exemplo).
- Costuma durar de dois a cinco minutos.
- É frequentemente associada a outros sintomas, sendo os mais comuns a falta de ar, enjoos e transpiração intensa.
- Quem tem angina pode ainda ter outros sinais avaliados pelo médico tais como:
- Aumento da velocidade das batidas do coração (taquicardia).
- Aumento da pressão arterial (hipertensão).
- Sons e sopros novos auscultados no coração.
O médico pode ainda qualificar a angina como típica, atípica ou não anginosa.
Para fazer isso ele avalia três sintomas principais:
- Descrição do desconforto no peito e duração típicos (2 a 5 minutos).
- Provocada por esforço ou estresse emocional.
- Alívio com repouso ou nitroglicerina
A angina típica é aquela em que o desconforto torácico é caracterizado por todos os 3 sintomas acima. A angina atípica ocorre quando existe a dor no peito associado a apenas 2 dos sintomas acima. E a dor não anginosa é aquela em que ocorre a dor torácica com uma ou nenhuma das características acima.
Diagnóstico de Infarto
A maioria dos casos de infarto causam angina, mas quando ela não está presente, outros sinais e sintomas existem, tais como falta de ar, transpiração excessiva, pressão elevada e palpitação.
O diagnóstico é feito com base na história de angina típica, no exame físico (ausculta do coração, avaliação da pressão arterial, entre outros) e com um eletrocardiograma. O eletrocardiograma tem alguns sinais característicos que ajudam o médico a entender se há um infarto em curso. Num ambiente de pronto atendimento, o médico pode ainda pedir um exame de avaliação de troponinas. As troponinas são um tipo de proteína presentes nos músculos do coração, porém também em outros músculos e tecidos do corpo. Quando o miocárdio sofre com a falta de oxigênio, as troponinas presentes em seu interior são liberadas no sangue. Dessa forma, um aumento repentino desses valores é altamente sugestivo de infarto agudo do miocárdio.
Em alguns casos existe a angina desencadeada pelo esforço, porém ela não está presente no momento da avaliação pelo médico. O paciente descreve que tem essas dores no peito há meses, porém vêm se tornando mais intensas e frequentes nas últimas semanas.
Nestes casos o eletrocardiograma, que é basicamente uma “foto” do funcionamento da parte elétrica do coração, pode ser normal, pois o coração não está sofrendo nenhuma injúria no momento do exame.
O médico pode então solicitar um exame chamado de teste ergométrico, ou teste de esteira. Este teste consiste em fazer um eletrocardiograma contínuo durante uma situação de aumento de demanda de energia pelo coração, que é simulado com o caminhar ou correr numa esteira. É como se fosse um vídeo procurando pelo momento em que um eventual estreitamento de uma coronária impeça que a quantidade necessária de sangue chegue até o miocárdio, levando ao aparecimento de sinais sugestivos no eletrocardiograma, além de poder desencadear a angina e todos os sintomas associados.
Esse exame precisa ser realizado por um cardiologista em um ambiente controlado. Apesar de alguns médicos o pedirem de rotina anualmente para todos os pacientes que o consultam, ele não tem essa indicação. As evidências apontam que ele não é adequado para pessoas sem sintomas, sendo recomendável para casos de histórias prováveis de infarto, além de dor no peito em que foi descartado o infarto pelo eletrocardiograma e troponinas. Assim como todo exame, ele só deve ser realizado se um possível tratamento traga benefícios para o paciente.
Tratamento do Infarto
O tratamento definitivo do infarto se dá com a realização do desentupimento da coronária afetada. Porém nem sempre isso é possível.
Conforme o caso e o tempo do início dos sintomas o médico pode fazer basicamente o seguinte:
- Levar o paciente para um centro de cardiologia onde possa realizar um procedimento chamado de cateterismo ou angiografia coronária. O cateterismo é um procedimento que permite visualizar as artérias do coração com a aplicação de um contraste. Normalmente ele precisa ser realizado em até duas horas do início dos sintomas. Se uma artéria está entupida o médico pode realizar um segundo procedimento chamado de angioplastia, que consiste na colocação de um stent, uma espécie de mola metálica que abre e mantém aberta a coronária entupida. Este procedimento costuma ser indicado se o início dos sintomas tem menos do que 2 horas.
- Aplicar medicamentos para tentar destruir o eventual coágulo que esteja obstruindo alguma coronária. Esse procedimento é chamado de fibrinólise e é indicado quando há alguma contraindicação ao cateterismo, incluindo o tempo maior do que 2 horas do início dos sintomas. Normalmente depois de 12 horas do início dos sintomas de infarto, a fibrinólise não é mais indicada.
- Realização de uma cirurgia de revascularização do miocárdio, a chamada ponte de safena. A safena é uma veia localizada na perna e ela pode ser utilizada para fazer um caminho alternativo para o sangue percorrer e irrigar a porção do miocárdio que não recebe mais sangue devido ao entupimento de uma coronária ou uma de suas derivações. É uma cirurgia cada vez menos frequente mais ainda indicada para casos específicos.
No caso de terem passadas muitas horas do início dos sintomas, a obstrução da coronária acaba sendo definitiva e os danos ao miocárdio irreversíveis. Nestes casos o médico pode solicitar outros exames para avaliar a funcionalidade do coração, como a cintilografia ou ecocardiografia. Conforme as sequelas no coração, o tratamento irá consistir em medicamentos para melhorar a função do coração, além de reforçar os cuidados com os fatores de risco, incluindo cessar o tabagismo, iniciar atividades físicas se possível, cuidar da alimentação e do estresse.
Para quem recebeu um stent, o médico poderá indicar o uso de um medicamento para evitar que coágulos de sangue se formem e se grudem no metal. O mais comum deles é o clopidogrel e seu uso normalmente é indicado por um período que pode variar de 3 meses há 1 ano. Existem stents que já são revestidos de medicação para tentar evitar a formação de coágulos, eles são chamados de stents farmacológicos e não são necessariamente superiores aos não farmacológicos.
Para todos que tiveram infarto, independente do tratamento, e se não houver contraindicação, é comum o médico indicar o uso de um comprimido diário de AAS ou aspirina, o ácido acetilsalicílico. Esse comprimido deve ser tomado de preferência após o almoço. Se seu médico indicou a Aspirina Prevent (que é o mesmo AAS, porém com um revestimento que supostamente deveria proteger o estômago), esse deve ser tomado 30 minutos antes das refeições. Alguns estudos mostram que o AAS diário pode prevenir a reocorrência de infartos, porém não é indicado para quem nunca teve algum episódio de infarto. O principal efeito colateral do AAS é o sangramento ou dor no estômago. Os estudos mostram que o risco de sangramento não muda com o uso dos medicamentos com revestimento como a Aspirina Prevent.
Conclusões
O infarto agudo do miocárdio é uma doença que afeta principalmente homens, idosos, obesos, sedentários, fumantes, com diabetes, pressão alta e colesterol elevado. O sintoma mais comum é a angina, que consiste em um desconforto no peito que dura de 2 a 5 minutos e é desencadeada por esforço físico ou situações estressantes. O diagnóstico é feito com a história típica, exame físico, eletrocardiograma e dosagem de troponinas, realizado normalmente num ambiente de emergência hospitalar. O tratamento requer um ambiente especializado que permita a realização de exames e procedimentos complexos como o cateterismo, angioplastia e cirurgia de revascularização.
Na vigência de desconforto no peito de início súbito, procure um pronto atendimento urgente! Tempo é músculo!
*Em tempo: Papai Noel fez o cateterismo que comprovou que a coronária descendente anterior estava com cerca de 90% de obstrução. Recebeu um stent e está agora tomando AAS e clopidogrel. Ele prometeu que vai parar de fumar, fará seus checkups periódicos e vai controlar melhor sua pressão arterial e seu diabetes. Ainda está no hospital, mas a Mamãe Noel garantiu que os presentes serão entregues no horário combinado na noite de Natal.
Obrigado por acompanhar o blog.
Desejos de um Natal de muita paz, saúde e alegrias para você, seus amigos e familiares.
Um forte e carinhoso abraço.
*Imagem que ilustra este artigo: © pixelshot via canva.com.